terça-feira, 5 de julho de 2022

Beethoven & Eu

Relutei por muito tempo assistir o famoso filme Marley e Eu, mas acabei cedendo a ele numa dessas tardes dominicais sem nada pra fazer (na verdade, uma tarde com muitas tarefas, mas que decidi renunciar). No final do filme não pude evitar as lágrimas, o que me fez lembrar de uma relação que eu tive com o verdadeiro "pior cachorro do mundo", o Beethoven.

Ele era o maior cachorro da ninhada, filho de um pastor alemão e uma cachorra SRD (sem raça definida). A Bolinha, sua mãe, era uma cachorrinha muito divertida, mas não gostava de crianças. Meu avô a recebeu meio sem vontade mas acabou por acolhe-la porque, caso contrário, ela ficaria sem lar. Quando eu ia visitar meus avós, ficava sabendo das peraltices dela, como correr atrás de um garoto da vizinhança, e de ter mordido e baixado suas calças (eu sei, eu não devia rir disso... mas esse evento rendeu revanche por parte da mãe do menino que adorava jogar os cachorros dela pra cima de mim - mesmo que eu não tivesse nada a ver com o caso).

Bolinha teve um grande amigo: Bilie - um poodle com a metade do seu tamanho, que era da minha prima que tinha se mudado para um apartamento e não podia ficar com ele. Apesar da amizade, Bolinha não podia contar com ele em momentos cruciais de sua descarga hormonal por que ele não conseguia alcançá-la. Foi aí então que ofereceram para ela cruzar com o pastor. Como meus avós só teriam direito a um filhote, escolheram logo o maior.

Bilie já havia falecido e Bolinha faleceu pouco depois do desmame dos filhotes e Beethoven foi crescendo. Meu primo morava na casa no fim do terreno dos meus avós e sua esposa tinha idéias "maravilhosas" para a criação do cachorro: mantê-lo amarrado o dia inteiro, alimentá-lo só à noite, e de vez em quando bater nele. Claro que meus avós não seguiram à risca, alimentavam o cachorro sim com freqüência, mas os maus tratos da mulher fizeram com que Beethoven fosse crescendo cada vez mais violento. Eu mesma passei só a entrar na casa os meus avós quando ele estivesse preso.

Era copa de 2002 e um gato laranja acompanhou minha mãe até em casa. Nesta época estávamos morando na rua dos meus avós. De madrugada ia passar o jogo Brasil x Inglaterra. Como o Brasil venceu, batizamos o gato de David Beckham. (Ele era de longe o gato mais simpático que já tivemos e merece uma história à parte.) Acontece que o Beckham seguia minha mãe para todos os lados e, consequentemente, até a casa da minha avó. Acontece que o Beethoven era conhecido por ser violento e matar gatos, e na primeira vez que ele seguiu minha mãe, ficamos apreensivas. Qual foi a nossa surpresa quando percebemos que o gato tinha humanizado o cachorro - foi quando eu descobri que o Beethoven podia ser um cão legal.

Beethoven podia ser muitas coisas, mas ele era um excelente pet para meus avós. Podia ser agressivo com outras pessoas, mas nunca machucou seus verdadeiros tutores. Ele sempre foi obediente ao meu avô e sempre estava por perto quando minha avó ia na varanda ler a Bíblia (havia até uma piada sobre isso por ele ser filho de pastor alemão).

Aos poucos fui me acostumando com a presença dele, e ele com a minha. Não éramos os melhores amigos, mas eu sempre que podia tentava fazer carinho nele. Mas ele tinha muitas ressalvas. Certa vez eu estava chateada e entrei na casa dos meus avós, e ele percebeu minha perturbação e me atacou. Não que ele estivesse defendendo meus avós, porque eu estava bem longe deles. Eu sei que aquele cachorro se incomodava até com um cheiro diferente ou uma energia diferente que a gente tivesse.

Apesar do mau gênio, pediram certa vez que ele cruzasse com uma cachorra da vizinhança. Como de praxe, ofereceram um dos filhotes para meus avós, o Tobe. Tobe era exatamente o oposto do pai: amoroso, alegre, amava crianças. A essa altura já era mãe e minha filha era encantada pelo cachorrinho. Ele era grande como o pai, e chegou a ficar bem maior que ela. Mas a convivência entre os dois cachorros era horrível, e no final meu avô teve que se desfazer do Tobe (porque o Beethoven ninguém queria).

Beethoven era violento, mas também forte. Chegou a ser atropelado duas vezes numa avenida e se recuperou sem sequelas. Teve um tumor que os veterinários falaram para esperarmos o pior, ele ficou um dia inteiro sem se levantar depois da cirurgia e depois "reviveu" como se nada tivesse acontecido. Era impressionante, uma força feroz da natureza, em muitos sentidos.

Mas nada é tão forte para sempre. A força maior do tempo o arrebatou. Um tumor, talvez interno, estourou. Na verdade não soubemos bem ao certo, foi muito rápido. Ele sangrava e gemia o tempo inteiro, e não sabíamos como levá-lo ao hospital. Era perigoso chegar perto dele, e as únicas pessoas que conseguiam - minha avó e minha mãe - não podiam com ele. Era feriado prolongado e poucos veterinários me atendiam também. Por fim consegui um contato que, depois de ficar a par de toda a situação (histórico médico, idade, sintomas) disse que a única solução era eutanásia. Não havia mais nada que pudéssemos fazer, apenas aliviar a dor. Falei com minha mãe e minha avó. Eu não amava aquele cachorro, por muitas vezes tive problemas com ele, mas aquele diagnóstico me arrasou.

Beethoven viveu por 15 longos anos. Foi o parceiro fiel e guardião dos meus avós por todo esse tempo. Quando meu avô se foi, ele foi fiel até à sua memória, procurando-o incansavelmente pela casa.


No final, ele pareceu muito menor, como se toda a força dele estivesse no seu espírito, e depois de ter partido deixou uma casca pequena e um vazio surpreendentemente enorme.

Eu posso agora ir no quintal e ouvir seus latidos e sentir sua presença nos guardando. Nunca pensei que um dia admitiria sentir tanto a sua falta.